Não há Educação sem boniteza.

Paulo Freire

domingo, 5 de maio de 2013

MODIFICAÇÃO COMPORTAMENTAL NO AUTISMO - Relato de um caso bem sucedido


Muita coisa já foi escrita e muitas teorias já foram criadas na tentativa de tentar explicar os mecanismos envolvidos nos sintomas autísticos.  A “Teoria da Mente” é uma delas, e procura explicar a habilidade que as pessoas têm de atribuir estados mentais a si e aos outros, ou seja, procura explicar como uma pessoa atribui a ela mesma e/ou a outras pessoas, as emoções, as crenças os desejos e as intenções e o faz de conta. Os autistas possuem um déficit nessa capacidade de construir "teorias da mente", que dificulta não só a compreensão da própria mente como também a compreensão da mente de outras pessoas.  Ao mesmo tempo em que ele não sabe como funciona o mundo e as pessoas, não sabe também como ele próprio funciona. Não é capaz de avaliar porque estamos tristes ou bravos, por exemplo, ou de prever nossas reações e conhecer nossas expressões faciais.

Por exemplo, costumo fazer o mesmo trajeto para levar meu filho à escola. Hoje uma das ruas está interditada e mudo o trajeto. Uma criança sem autismo entende que essa mudança em nada vai afetar o seu dia na escola, no máximo um atraso.  Mas a criança com autismo não pode “prever” ou entender que essa mudança não afetará seu dia. Ela guarda na memória todas as ações, atividades e trajetos até chegar à escola e uma mudança gera ansiedade, medo e recusa. Por isso, se apega em rotinas. As rotinas são previsíveis. Daí ela se torna inflexível e fará de tudo para que esse trajeto não seja mudado.

Essa falta de habilidade é estendida para a identificação de emoções, tanto em si, quanto no outro. Sabemos quando nosso coração bate aceleradamente por medo, alegria, susto ou até felicidade. O autista, alguns em menor grau e outros severamente, não reconhece essas diferenças.  Ele sente apenas o coração batendo aceleradamente e não identifica se está correndo perigo ou se está feliz. A sensação e a reação pode ser a mesma para os dois fatos.

O autista também não brinca de “faz de conta”. Não usa uma colher, por exemplo, como microfone, ou uma caixa de papelão como um carrinho. Seria muito complicado se ele tivesse que memorizar todos os usos de uma colher. Para o autista as coisas são ou não são. Não entende também quando você tenta brincar de aviãozinho para alimentá-lo ou não sabe brincar com uma boneca, que nada mais é do que “um faz de conta”.

Esse caso ilustra de forma clara a “teoria da mente” e relatarei aqui o início dos atendimentos desse adolescente encantador de 16 anos com autismo. Seu autismo é de grau leve para médio, contudo apresentava muitas esteriotipias e distúrbios comportamentais.
Aprendi com eles que nada deve ser feito ou mudado sem antes informá-los e então orientei a mãe como deveria proceder para trazê-lo às sessões. Paulo, como o chamarei aqui, já havia sido treinado com o sistema de horários do TEACCH (Promovendo a Aprendizagem para Autistas) e bastou ser acrescentado o cartão da “Psicóloga” em seu “horário de atividades” de casa. Antes a mãe o trouxe ao consultório por quatro vezes, as terças e quintas, no horário combinado e associou a ida ao cartão. Na primeira vez ele apenas entrou na sala e explorou-a, na segunda fiz o sentar e na terceira ficou 20 minutos. A partir daí ele já aceitou vir e ficar de 40 a 60 minutos comigo. Foram seis sessões de avaliação onde suas habilidades e dificuldades foram levantadas e junto com a família traçamos alguns objetivos. O primeiro foi trabalhar suas reações extremas e de auto-agressão frente a barulhos altos, frente a medos, a felicidade, raiva e tristeza. Paulo se descontrolava quando ouvia foguetes estourando ou barulhos muito altos e estranhamente tinha os mesmos comportamentos frente a manifestações de alegria, tristeza e medo.

Comecei então com balões.  Primeiro vazios, é claro. Fiz muitas atividades com balões. Brincamos de enchê-los com água, usamos como barbante para consertar carrinhos, recortamos e fizemos colagem e amarramos uns aos outros para fazer uma grande corda, que ele adorou.  Agora passamos para a fase de enchê-los. Um pouco só, evitando estourá-los. Bolei algumas atividades também com os balões meio cheios, como fazê-los assoviar, sair voando quando soltos, entre outras.  Tudo bem até aqui. Precisava agora fazer com que ele estourasse um balão com um alfinete. Permiti que tampasse bem os ouvidos e eu estourei um. Ele começou a se auto-agredir, como fazia, mas parou logo e ficou esperando que eu estourasse outro. Coloquei sua mão sobre o seu coração e disse “susto”, mostrando o cartão de um balão estourando. Tentei novamente. Coloquei-lhe um protetor auricular e estourei outro e antes que ele pudesse se morder, peguei sua mão, coloquei-a no coração e disse “susto”, mostrando novamente o cartão. Depois de algumas sessões ele já não precisava mais  tampar os ouvidos. Eu lhe mostrava o cartão antes, permitindo assim que ele pudesse saber o que iria acontecer e se preparar, dava-lhe o alfinete e ele mesmo estourava. 

Foram seis meses trabalhando com “sustos”. Levei jogos que “dão sustos”, como o “Pula Pirata”,  entre outros, sempre trabalhando juntamente com os cartões, agora eram dois, um com o balão estourando, onde eu falava “estouro” e outro ilustrado com um menino com uma expressão assustado, que eu denominava apenas “susto”. Estava tentando associar à emoção a expressão facial com esse segundo cartão. Minha intenção era retirar o cartão do balão estourando e usar apenas a da expressão facial na identificação da emoção.
Precisava agora mostrar-lhe a diferença entre “levar um susto”, onde o coração bate aceleradamente e “ficar feliz”, onde o coração também bate depressa. Ele reagia com auto-agressões quando feliz, assustado, triste, com raiva ou medo. Para isso contei com a ajuda da família. Selecionamos várias situações que o agradavam muito e onde ele se auto-agredia. Reproduzi-as em consultório, agora mostrando-lhe o cartão do que iria acontecer e o cartão de um menino feliz e dizia “feliz”, colocando sua mão no coração para perceber que também batia depressa.
Não precisou de muito tempo para ele perceber que as duas coisas faziam seu coração bater loucamente, mas que ele saberia como enfrentar, pois agora ele sabia o que sentia.
Sua mãe começou a usar os dois cartões em casa, o do “susto” e o da “felicidade”, bem como outros que foram treinados posteriormente, como o cartão da “raiva”, do “medo” e o da “tristeza”. Sempre ela usava um cartão para identificar o que iria acontecer e o da expressão facial para identificar o sentimento e prepará-lo para a situação. Acreditamos que ele compreendeu o significado de “emoções” quando seu carrinho quebrou e ele buscou o cartão da “raiva” e do “susto”, mostrou a sua mãe, colocou a mão no coração e disse: “coração bate”. Sua mãe, acertadamente, trocou os dois cartões pelo da “tristeza”, fazendo com que ele se definisse melhor.
Montamos um caderninho que ele carrega no bolso com todos os cartões. Na escola, as professoras o ajudam a identificar suas emoções com os cartões, preparando-o para as situações que irão acontecer. Por exemplo, no dia da natação, que lhe causa enorme felicidade e prazer, em seu horário de atividades, antes do cartão da natação, está o cartão da felicidade. Assim, é permitido que ele saiba de antemão o que irá acontecer e como ele irá se sentir. Antes, por ser tudo a mesma coisa, ou melhor, por ele considerar todas as emoções iguais, medo, susto, raiva, alegria e tristeza, ele não sabia como reagir. Tudo que faz bater o coração forte e rápido é perigoso, é medo, é susto, portanto, preciso me defender.  Ás vezes, não podemos prever com antecedência o que irá acontecer, então, se estourava um foguete na rua, a professora pegava imediatamente o cartão do “susto” e lhe mostrava, apagando qualquer chance dele se auto-agredir e se sentir ameaçado.

Não sei se Paulo um dia irá largar seus “cartões de emoções”, como eu os chamo. Mas fazê-lo entender esses sentimentos básicos, abriu-lhe muitas outras portas e o fez mais tranqüilo. Deve ser muito difícil sentir alguma emoção e achar sempre que é medo, como Paulo achava. Ainda acontecem imprevistos, mas contornáveis, e outros cartões se somaram aos cinco iniciais, como o da “dor” e da “paixão”. Sim, o coração de Paulo bateu mais depressa por uma menina, pode isso?

Essa foi a primeira fase. Ainda trabalhamos outras dificuldades, comportamentos e esteriotipias. Mas isso fica para um próximo post.

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